domingo, 23 de novembro de 2014

Bem-aventurados os humildes de espiríto

Artigo publicado originalmente no jornal A Batalha:

Uma das tendências mais perniciosas das sociedades ditas democráticas está associada à consciencialização geral de que somos todos iguais. Porque se todos partimos da mesma condição ou da mesma meta, o reconhecimento ulterior da superioridade de um de nós implica, ainda que tacitamente, o rebaixamento pessoal dos restantes, a aceitação de que se deixaram ficar para trás – coisa com a qual, tendencialmente, o nosso orgulho não se compadece.

Em Da Democracia na América, Alexis de Tocqueville explorou, num outro plano, esta mesma ideia. Para o aristocrata francês, os cidadãos comuns não reagem bem quando vêm um dos seus pares alcançar o poder e a riqueza em pouco tempo. «É incómodo atribui-lo aos seus talentos ou à sua virtude, pois isso seria reconhecer que eles próprios são menos virtuosos e hábeis do que ele»; por isso, na opinião do autor, tendem a atribui-lo aos vícios da democracia.

Nos nossos dias, este fenómeno manifesta-se nas várias dimensões da nossa vida. Senão, vejamos: no futebol, quando o resultado não nos sorri, enaltecemos o árbitro e a sua prezada progenitora ou aclamamos o “sistema”; na política, quando o nosso partido não vinga, denunciamos as propostas demagógicas e populistas da oposição ou disparamos, ainda que baixinho, contra o eleitorado estúpido e ignorante; na faculdade, quando nos deparamos com excelentes alunos, apelidamo-los de “ratos de biblioteca” e tentamos convencer-nos de que nunca viram a luz do dia (ou da noite…) e de que não têm vida social; no mercado de trabalho, quando um tipo conhecido entra numa grande empresa, já estamos à procura, quais baratas tontas, da origem de tamanha cunha.

Há sempre uma desculpa. Há sempre uma merdinha que nos impede de dizer “este gajo é melhor do que eu!”. Porquê? Porque a nossa natureza (ferida) é alérgica a actos de contrição. Esta “auto-desresponsabilização” conforta-nos. A conspiração faz-nos sentir melhor com a nossa inércia e com as nossas fraquezas. É sempre mais fácil agarrarmo-nos à ideia de que uma qualquer causa exógena interferiu nesta disparidade de destinos do que fazermos um mea culpa, reconhecendo que não fomos ou não somos suficientemente bons para ombrearmos com aqueles que chegam, legitimamente, ao topo.

É sempre comovente ouvir alguém dizer que falhou, que não foi capaz, que não esteve à altura das expectativas ou dos acontecimentos; sem falar dos outros, sem procurar responsabilidades alheias. Por detrás deste pequeno e simples gesto, costuma estar um espirito aberto, genuíno e humilde. É curioso constatar que os mais fortes são precisamente os que habitualmente se predispõem a assumir posturas humilhantes, os que se sujeitam a (porque não receiam) posições de fraqueza; e os mais fracos os que não se conseguem livrar da sua muy nobre e respeitável imagem de soberano e todo-poderoso.

Como diria Sartre, “o homem está condenado a ser livre”. E também aqui esta velha máxima se aplica. Na verdade, tudo se resume a uma questão de liberdade. De espirito, claro está.

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