domingo, 11 de dezembro de 2016

A crise das referências

É difícil medir o quão importante é para nós ter referências. Pessoas que nos desafiam a ser melhores. Para quem olhamos e pensamos: “um dia quero ser assim”.

As referências são importantes porque nos ajudam a encontrar o propósito da nossa vida. Orientam-nos. À pergunta “o que devo fazer para ser feliz?” as referências servem de guia. Mostram-nos o caminho.

Uma pessoa que vive constantemente triste e deprimida dificilmente será uma referência para alguém. Poderá sê-lo profissional ou academicamente, mas nunca numa dimensão mais ampla. Pessoas bem-sucedidas, que irradiam alegria, mais facilmente servem de modelo para outros.

Podemos encontrar referências em vários locais. Na nossa vida concreta (máxime, na família) num livro, numa história, na televisão. O Cristiano Ronaldo pode ser uma referência para muitos jovens que nascem em bairros mais problemáticos e em famílias mais pobres e que aspiram a ter uma vida melhor.

Não ter referências ou ter referências erradas é perigoso.

Não ter para quem olhar e pensar “eu quero ser assim” deixa-nos à deriva, sem norte. Faz de nós pessoas resignadas, abandonadas à nossa sorte e com poucas convicções sobre o que queremos.

Ter referências erradas é igualmente perigoso. Uma referência pode ser errada quando não olhamos para a sua vida como um todo, mas apenas parcialmente. Alguém muito bem-sucedido profissionalmente pode não ser uma boa referência porque, por detrás do seu sucesso profissional, do seu estatuto e da sua riqueza, pode estar um pai que nunca se preocupou com os filhos, um marido que deixou de cuidar da mulher, um homem sem qualquer actividade para além do trabalho. Alguém muito bem-sucedido profissionalmente pode ser alguém profundamente infeliz.

Daí a importância de definirmos bem o critério à luz do qual buscamos as nossas referências. A actual crise das referências nasce não só do facto de essas referências (as verdadeiras referências) estarem em extinção, mas também do facto de as estarmos a procurar a partir de critérios errados. O primeiro facto deriva do segundo. Isto explica grande parte da nossa desorientação e, em última instância, da infelicidade crescente que assalta as novas gerações (nos EUA as taxas de depressão actualmente são dez vezes mais elevadas que nos anos 60). 

A minha geração corre o risco de ser profundamente infeliz porque não tem referências ou porque se guia pelas referências erradas. Neste último caso porque adopta, a priori, o critério errado de julgamento. Medimos o sucesso de alguém em função do que é mais visível e não do que é mais importante. Como explica o professor de Harvard Clayton M. Christensen, em How will you measure your life?, a carreira e a riqueza são critérios mais visíveis e palpáveis do que a realização pessoal. Nas conversas entre amigos, ambicionamos ser como o CEO desta ou daquela empresa, sem nos preocuparmos se ele é ou não feliz. Queremos alcançar o sucesso, o estatuto ou a riqueza de alguém; não a sua felicidade.

É uma pena que assim seja. É possível que, quem não tenha referências (ou verdadeiras referências), não compreenda o alcance destas palavras. É-nos difícil compreender inteiramente o que nunca nos foi dado a conhecer. Eu, um sortudo, sei bem o importante que foi, ao longo do meu processo de crescimento e amadurecimento (que hoje prossegue), ter o privilégio de me cruzar com verdadeiras referências. Pessoas que, não sendo perfeitas, me mostraram, pelo seu exemplo de vida, o que é a felicidade, a harmonia, a plenitude. Que me deram a conhecer a importância de cultivarmos relações fortes e duradouras (de que um casamento bem vivido é o exemplo máximo) e de sabermos reconhecer e agradecer, no nosso dia-a-dia, as tantas coisas boas que temos e recebemos. Que me ensinaram a adoptar uma postura de gratidão permanente pelas pequenas coisas presentes, ao invés de uma de expectativa interminável pelas grandes coisas futuras (sempre tão incertas).

Tenho muita pena que nem a todos seja dada esta oportunidade. Descanso na esperança de, um dia, poder vir a retribuir este privilégio através do meu próprio exemplo. "A quem muito foi dado, muito será exigido."

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Uber

O que mais incomoda nesta história da Uber não é tanto a acção da Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL) mas a do Estado legislador. A reivindicação da ANTRAL é, face à legislação vigente, justa e legítima: se os taxistas têm de estar devidamente autorizados para prestar o serviço (alvará da empresa, emitida pelo IMT, I.P., e licenças dos veículos, emitidas pelos municípios) e limitados pelo regime de preços fixado, é normal que exijam as mesmas condições (rectius, restrições) para quem exerce actividade idêntica.

O problema é prévio: temos, espante-se, o Estado a determinar a régua e esquadro o modo como o transporte público em veículos ligeiros de passageiros pode ser efectuado, não sem prejuízo para os consumidores. O legislador passa-nos novamente um atestado de estupidez (ao impedir-nos de fazermos pessoal e livremente essa escolha) e priva-nos, também novamente, de mais uma parcela de liberdade. Significa isto que vamos continuar a pagar mais por um serviço de pior qualidade.

É bom que estes episódios aconteçam. Ajudam-nos a tomarmos consciência de que esta coisa do Estado Leviatã não é mera conversa de ortodoxo liberal mas uma ameaça concreta e real à nossa liberdade de escolha e, por conseguinte, à nossa noção de responsabilidade.

sábado, 25 de abril de 2015

Novas formas de narcisismo


Que pensar desta nova prática feminina de publicar fotografias indiscutivelmente ousadas e provocadoras nas redes sociais? Que dizer desta recente corrente de culto do próprio corpo, exemplo extremo de narcisismo?

Em primeiro lugar, que é reveladora do sentimento de solidão que atormenta o Homem. Testar os limites e desafiar os padrões tornou-se, recentemente, na melhor forma de gerar polémica, provocar reacções e, consequentemente, ser o centro das atenções. Esta necessidade agravou-se com o surgimento das redes sociais e, particularmente, com o aparecimento de um novo modelo de aprovação social: o "like". Os novos jovens, inebriados com as modernas fontes de entretenimento (como sejam as séries televisivas e redes sociais), distantes das gerações antigas, desligados das famílias, dispersos entre si e desinteressados dos temas mais profundos, buscam nos "likes" a aprovação e atenção que a sociedade já não lhes confere. Para isso, tudo vale.

Uma mulher disposta a expor desavergonhada e recorrentemente as formas do corpo à comunidade, a troco de umas dezenas ou centenas de "likes" e outros tantos comentários banais, revela apenas uma coisa: a sua baixa auto-estima.

domingo, 23 de novembro de 2014

A geração do entretenimento

Artigo publicado originalmente no jornal A Batalha.

Se tivesse que escolher uma palavra para descrever a minha geração não teria grande dificuldade: caracterizá-la-ia como a geração do “entretenimento”.

O entretenimento, quando não é moderado, tende a tornar-se numa verdadeira doença. Uma doença tão forte que nos remete para o esquecimento pessoal e que nos impede de viver a vida real. Estamos entretidos quando partilhamos estados e comentamos fotografias no facebook, instagram e twitter. Estamos entretidos quando nos enterramos no sofá a devorar séries, novelas e filmes. Estamos entretidos quando jogamos incessantemente candy crush e 2048. Tudo são formas de passar o tempo e de não nos encontrarmos connosco próprios. É incómodo reconhecê-lo? Claro que é. Todos nós o fazemos, uns mais, outros menos.

O problema da geração do entretenimento é que acaba por não ter tempo, paciência ou (até) capacidade para o mais básico dos exercícios: pensar em si mesmo (i.e., para o auto-conhecimento). Os meus amigos costumam dizer-me que ficam atrapalhados quando, em entrevistas de trabalho, os interrogam acerca dos próprios defeitos. Aquilo que deveria ser uma pergunta elementar tornou-se, afinal, numa questão assaz complexa e ousada, ao nível de um verdadeiro quebra-cabeças. É uma daquelas perguntas incómodas, que nos obriga a mergulhar numa dimensão mais intima e profunda do nosso ser e que, provavelmente, nunca tivemos oportunidade de discutir com o nosso círculo de amigos.

Foi nesta ausência de reflexão que Hannah Arendt encontrou, no século passado, as raízes daquilo a que chamou “banalidade do mal”. Com este conceito, Arendt reportava-se àquelas pessoas que haviam prescindido da sua capacidade de pensar e reflectir e que, consequentemente, se tornaram cúmplices do Holocausto. Note-se que o que despertou a atenção da autora judia não foram as mentes perversas e ideologicamente comprometidas, capazes de praticar o “mal radical”, mas as pessoas vulgares ou normais; aquelas que, em circunstâncias normais, seriam incapazes de cometer um crime mas que, em virtude da ausência de reflexão, se tornaram coniventes com o regime nazi.

O entretenimento é, nos nossos dias, uma porta aberta para a banalidade do mal. O mesmo é dizer: uma porta aberta para acolhermos acriticamente e praticarmos tudo aquilo que nos é apresentado como sendo normal mas que, ao fim e ao cabo, pode ser moralmente condenável. A nossa geração não está a ser - claro está - conivente com um regime opressor e totalitário; mas está a sê-lo com uma mentalidade enraizada de instrumentalização e coisificação da pessoa humana. O pretexto (amiúde utilizado) do “mas ele até é boa pessoa…” tornou-se recorrente e apenas demonstra que cometemos erros não porque somos más pessoas mas porque não medimos atempadamente as consequências do que fazemos.

A conclusão é por demais evidente: o mal triunfa na ausência de reflexão. Está aqui o grande desafio da geração do entretenimento.

Salário Mínimo

Artigo publicado originalmente no jornal A Batalha.

A discussão em torno do aumento do Salário Mínimo Nacional (SMN) remete-nos sempre para uma outra discussão: o fundamento da sua existência. E quando enveredamos por este caminho, há dois dados que não podemos olvidar.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer, sem qualquer tipo de complexos, que o decretamento de um SMN acarreta efeitos economicamente nocivos, nomeadamente em termos de desemprego. Associar ao factor trabalho um valor mínimo obrigatório restringe, em grande medida, a liberdade contratual das empresas e dos trabalhadores. As empresas deixam de poder contratar abaixo desse limiar; os trabalhadores deixam de poder prestar o trabalho em condições nas quais até poderiam estar dispostos a fazê-lo. O desemprego aumenta e os mais afectados são, evidentemente, os menos qualificados. Neste sentido, o SMN pode-se tornar verdadeiramente num pau de dois bicos.

Em segundo lugar, é igualmente imperioso tecer um juízo antropológico: para aqueles que, como eu, têm uma visão pessimista da natureza humana, torna-se fácil de ver a que tipo de situações pode conduzir a arbitrariedade laboral. E, neste campo, perdoem-me a honestidade: mais assustador do que a ignorância daqueles que ignoram os efeitos economicamente perniciosos do decretamento de um SMN é a ingenuidade daqueles que crêem na sua dispensabilidade e que, consequentemente, apenas conseguem vislumbrar um mundo cor-de-rosa de liberdades e negociações justas. As notícias de exploração do trabalho em certos países do Oriente, somadas às atrocidades cometidas na nossa Europa setecentista e oitocentista, já nos deveriam ter prevenido de certos males. Ainda há meses uma televisão alemã denunciava a situação precária e desumana em que viviam inúmeros trabalhadores de certas empresas germânicas. Na esteira dessa reportagem, a euronews também noticiou que se tornou recorrente, em certos sectores desse país (tido por muitos como o modelo económico europeu), pagarem-se salários entre os 300 e os 500 euros por mês. Compare-se o custo de vida alemão com o nosso e imagine-se a esmola em que isso se traduziria por cá...

Se é verdade que a abolição do SMN pode conduzir ao alargamento da esfera de liberdade, também o é que ele pode conduzir às mais perversas formas de abuso: a diversidade de ideias numa sociedade livre (de que tanto se orgulham os liberais) não se dirige apenas aos bons propósitos. Por isso, não creio que seja intelectualmente honesto afirmar-se que o decretamento do SMN se limita a melhorar ligeiramente a qualidade de vida de muitos (os que continuam empregados) e a deteriorar bastante a de outros (os novos desempregados). Se assim é, também é necessário reconhecer que a existência de um SMN impede que a tão propalada liberdade degenere, em muitos casos, em escravidão. Não numa escravidão baseada na cor ou na raça, como aquela que este triste mundo já testemunhou, mas numa escravidão baseada no desespero de alguns, oportunamente aproveitado e explorado pelos patrões mais inescrupulosos e ávidos por lucros.

A liberdade precisa do Estado. Mas não de um Estado totalitário ou abstencionista. Na verdade, do mesmo modo que atenta contra a liberdade humana um Estado excessivamente intervencionista que reduza significativamente o papel do indivíduo e dos corpos intermédios, também o faz um Estado que se exima de intervir, na qualidade de regulador, no âmbito das relações sociais e económicas, deixando os indivíduos, em posições de desigualdade, entregues à sua sorte. Não faltará por aí quem afirme que esta é uma posição muy pouco liberal: mas acreditem que o é para aqueles que, como eu, apenas conseguem conceber a liberdade contratual num contexto minimamente equilibrado entre as partes.

O decretamento de um SMN tem efeitos negativos no desemprego, sem dúvida. E quanto mais alto ele for, mais desempregados teremos, sendo que os primeiros a serem afectados serão precisamente aqueles que ele visava proteger: os menos qualificados. Contudo, estou em crer que seria um erro aboli-lo. Seria não levar em conta o segundo factor que referi. O SMN deve existir mas deve ser o mais baixo possível (i.e., deve ser o estritamente necessário para fazer face às despesas essenciais) e ter em linha de conta os números do desemprego. É por tudo isto que continuo com sérias dúvidas de que este seja o momento oportuno para discutirmos o seu aumento. 15,3% de desemprego ainda é muito…

Caridade vs Solidariedade

Artigo publicado originalmente no jornal A Batalha:

Numa fase mais ingénua e inocente da minha vida, jamais me passou pela cabeça que algum ser (dito) humano pudesse olhar para a prática da caridade com uma boa dose de repúdio e desprezo. A ajuda directa ao próximo sempre foi uma ideia bem presente na minha educação, das poucas que nunca me atrevi a testar ou desafiar intelectualmente, de tão entranhada que estava no meu genuíno conceito de "bondade". Aprendi que a caritas christiana não se esgota num acto isolado de misericórdia ou compaixão. É muito mais do que isso: «é amor recebido e dado», como ensinou Bento XVI.

Com o passar dos anos, fui-me apercebendo que aquilo que era um dos pilares basilares e incontestáveis de toda a minha - creio eu - sólida estrutura moral e ética, era posto em causa por um número considerável de pessoas.

Em Novembro de 2012, Paulo Pedroso, antigo deputado e ministro do PS, escreveu um post onde sintetiza o grande argumento que, desde cedo, me foi apresentado por estas hostes. Reportando-se concretamente à acção do Banco Alimentar (BA), depois de constatar que as suas campanhas de recolha em supermercados representavam apenas 10% do valor dos produtos recolhidos, Pedroso escreveu que o BA «precisa das campanhas de recolha em supermercados por boas razões de marketing e ao fazê-lo mantém ocupados os escuteiros e toda a rede de voluntários ligada à Igreja Católica, que enquanto estão à porta dos supermercados a estender-nos os saquinhos estão a contribuir à sua maneira para o bem comum e a ajudar-nos a - como em todos os actos de caridade - aliviar as consciências sem resolver nenhum problema estrutural.» Mais tarde, num comentário a esse mesmo post, concretizou esta ideia, dizendo estar «convencido que é mais eficaz à escala colectiva a solução da promoção dos direitos sociais, comandados pela necessidade e pela distribuição equitativa de recursos pelo Estado do que a caridade comandada pela disponibilidade».

Para esta visão, uma solidariedade efectiva (assegurada pelo Estado) deveria eliminar os pressupostos da existência da caridade (a cargo da sociedade civil). A caridade, porque se esgota em ajudas pontuais, não resolve problema estrutural nenhum. Os pobres permanecem pobres. Mais: como defendeu recentemente John Bird, criador do projecto Big Issue (projecto no qual se inspirou a Cais), a caridade não só não resolve o problema da pobreza como ainda o perpetua. Por isso, a sociedade deveria preocupar-se mais em erigir um mecanismo de alcance universal, que calibrasse a sua actividade não em função da oferta (a disponibilidade de produtos) mas da procura (as necessidades das pessoas). Para esta visão, portanto, aqueles gestos correntes de misericórdia ou de compaixão, mais do que contribuírem para a resolução de um problema estrutural, servem essencialmente para que certas pessoas aliviem as suas (pesadas) consciências.

É por tudo isto que Paulo Pedroso conclui: «Por mim, prefiro dedicar a minha energia a perguntar-me o que posso fazer para que diminua este tipo de procura de bens alimentares enquanto a senhora Jonet escoa a oferta». É aceitável que o diga. O que já não é aceitável é afirmar, como o fez, que a acção de Isabel Jonet não é promota dos direitos humanos.

Está aqui aquilo a que Roger Scruton chama um “optimista inescrupoloso”. Um optimista que, de tão inebriado que está com a sua ideia abstracta e utópica de um mega Estado que a todos socorra, acaba por descorar os seus deveres mais elementares ou, pior, condenar aqueles que arduamente procuram melhorar a sorte dos que os rodeiam. Não é de estranhar. As palavras de Paulo Pedroso estão em consonância com o diagnóstico de Scruton: «Os optimistas inescrupulosos acreditam que as dificuldades e as desordens da espécie humana podem ser vencidas por um ajustamento em grande escala: basta inventar um novo arranjo, um novo sistema, e as pessoas serão libertadas da sua prisão temporária para um reino de sucesso. Quando se trata de ajudar outros, portanto, todos os seus esforços são postos no esquema abstracto de melhoramento humano e absolutamente nenhum na virtude pessoal que lhes podia permitir o desempenho do pequeno papel que aos humanos é atribuído na melhoria da sorte dos seus semelhantes».

A prática da caridade não implica a desresponsabilização do Estado, ainda que ela exista para chegar aonde os poderes públicos e as ajudas institucionais muitas vezes não chegam. Por isso, caridade e solidariedade devem caminhar juntas, numa lógica complementar. A caridade é uma ajuda mais próxima, mais preocupada, mais pessoal. A solidariedade é uma ajuda mais distante, mais fria, mais institucional. Enquanto que a solidariedade tende a diminuir nos períodos de aflição colectiva (como aquele que actualmente estamos a viver), a caridade não cessa de aumentar. E não sou eu que o digo. São, por exemplo, os números do Banco Alimentar.

A caridade, antes de ser responsável pela perpetuação da pobreza, é responsável pela sobrevivência de milhões de pessoas e pela subsistência da possibilidade de essas mesmas pessoas encontrarem um novo rumo para as suas vidas. É por isso que é profundamente injusto dizer-se que a caridade, enquanto modelo de combate à pobreza, fracassou. Precisamente porque a caridade não é um modelo de combate à pobreza; pelo contrário, ela visa chegar aonde os modelos existentes não chegam. Ela é, de certa forma, subsidiária. E é por isso que ela triunfa, todos os dias, quando sacia a fome ou a sede de alguém que, de outra forma, estaria condenado à agonia.

Enquanto Pedroso e afins engendravam os seus geniais (mas provavelmente inconcretizáveis) planos de previdência social universais, a caridade resgatou da fome aqueles que eternamente esperaram pelo apoio do idílico plano. Pergunto-me, então, se não estará a aliviar menos a consciência aquele que estende os saquinhos do Banco Alimentar à porta do supermercado do que aquele que, escudando-se no argumento de que urge resolver o problema estrutural da pobreza, se resigna à inércia.

Limitarmo-nos a idealizar um plano de concretização duvidosa e menosprezarmos o trabalho daqueles que decidem materializar (ainda que numa escala menor) aquilo que para nós não passa do plano do abstracto e do desejável é que não é lá muito promotor dos direitos humanos… Digo eu. A pedido da minha consciência, note-se.

3 motivos para não gostar do Estado

Artigo publicado originalmente no jornal A Batalha.

1. Toda a responsabilidade pressupõe liberdade. Não nos podem pedir (muito menos exigir) que respondamos pela conduta de outrem. Não nos podem responsabilizar por algo que não depende de nós. Precisamente porque tudo aquilo que não é produto de uma decisão livre e consciente da nossa parte escapa à nossa esfera de controlo. Como reagiríamos se nos exigissem que pagássemos as dívidas do vizinho ou respondêssemos por um crime cometido por um desconhecido?

Quando a intervenção do Estado é excessiva e irresponsável, quando o Leviatã atinge dimensões injustificáveis, os contribuintes são chamados a financiar, mediante esbulho fiscal, as ineficiências, os vícios e as regalias inerentes a qualquer aparelho burocrático e centralizador que viva do ar (o mesmo é dizer, do dinheiro “dos outros”). O nosso caso é premente: qualquer cidadão português, mesmo aquele que construiu a sua vida sem recurso ao crédito, é agora confrontado com um confisco dos seus rendimentos (isto é, do produto do seu trabalho). “Epá, mas eu sempre vivi de acordo com as minhas possibilidades; nunca me endividei um único cêntimo!”. Pois é, temos pena. Não contribuíste para a factura do Soberano mas alguém tem de a pagar. Não dependeu de uma escolha tua mas vais ter de responder.

2. O Estado está constantemente a engordar. Isto ocorre por diversos motivos, dos quais apenas saliento um. Este motivo está directamente associado ao nosso regime democrático e prende-se com o facto de os partidos políticos (que aspiram a ser governo) recorrerem constantemente a medidas eleitoralistas (leia-se, despesistas) para se manterem ou chegarem ao poder. É assim que o Estado se vai apoderando paulatinamente de cada parcela da nossa liberdade; é assim que caminhamos rumo à servidão.

A coisa é simples. Os partidos x e y querem ganhar as eleições. Custe o que custar. O partido x promete então aumentar salários, apostar na construção de infra-estruturas e contratar mais docentes para as escolas. O partido y não se deixa ficar para trás: “nós vamos ainda oferecer computadores portáteis aos nossos estudantes!”. O povo fica contente. Clap, clap, clap, “vamos votar neste gajo!”. O nosso caso é, novamente, exemplar: alguém compreende que em 2009 (ano de eleições), com o Estado à beira da bancarrota, o primeiro-ministro tenha decidido aumentar o salário dos funcionários públicos? Não. Mas foi reeleito? Foi. Valeu a pena. Esta lógica funciona até acabar o dinheiro “dos outros”. Quando a factura chega, já vimos quem a paga.

3. A gestão do dinheiro alheio é pouco rigorosa. Há quatro formas de gastar dinheiro: podemos gastar o nosso dinheiro connosco; o nosso dinheiro com outra pessoa; o dinheiro de outra pessoa connosco; e o dinheiro dos outros com os outros. Nestes últimos dois casos, ao contrário do que sucede nos dois primeiros, a gestão de recursos tende a ser displicente ou pouco rigorosa. O Estado enquadra-se no último caso.

Esta ideia também é simples de ilustrar: basta pensarmos nos inúmeros negócios ruinosos celebrados pelo Estado português nos últimos anos, tão pesados para o erário público, de onde se destacam as famosíssimas e malogradas PPPs. Note-se, contudo, que o esbanjamento dos dinheiros públicos não se resume a “favores” desta natureza; ele resulta igualmente daquela postura negligente com que os burocratas tratam das coisas alheias, das coisas que não são suas. Exemplo: a classe média vai às compras. Os sacos vêm recheados de choco pillows, iced tea e delícias de cappucino. Experimentem dizer à classe média “hoje não pagam com o vosso cartão, pagam com o do Adamastor!” e verão que os sacos já vêm repletos de chocapic, ice tea e viennetta. É normal que assim seja: custa menos gastar o dinheiro alheio do que aquele que ganhamos com o nosso suor.

3 motivos para não gostar do Estado. E 3 motivos para não gostar do socialismo.

Bem-aventurados os humildes de espiríto

Artigo publicado originalmente no jornal A Batalha:

Uma das tendências mais perniciosas das sociedades ditas democráticas está associada à consciencialização geral de que somos todos iguais. Porque se todos partimos da mesma condição ou da mesma meta, o reconhecimento ulterior da superioridade de um de nós implica, ainda que tacitamente, o rebaixamento pessoal dos restantes, a aceitação de que se deixaram ficar para trás – coisa com a qual, tendencialmente, o nosso orgulho não se compadece.

Em Da Democracia na América, Alexis de Tocqueville explorou, num outro plano, esta mesma ideia. Para o aristocrata francês, os cidadãos comuns não reagem bem quando vêm um dos seus pares alcançar o poder e a riqueza em pouco tempo. «É incómodo atribui-lo aos seus talentos ou à sua virtude, pois isso seria reconhecer que eles próprios são menos virtuosos e hábeis do que ele»; por isso, na opinião do autor, tendem a atribui-lo aos vícios da democracia.

Nos nossos dias, este fenómeno manifesta-se nas várias dimensões da nossa vida. Senão, vejamos: no futebol, quando o resultado não nos sorri, enaltecemos o árbitro e a sua prezada progenitora ou aclamamos o “sistema”; na política, quando o nosso partido não vinga, denunciamos as propostas demagógicas e populistas da oposição ou disparamos, ainda que baixinho, contra o eleitorado estúpido e ignorante; na faculdade, quando nos deparamos com excelentes alunos, apelidamo-los de “ratos de biblioteca” e tentamos convencer-nos de que nunca viram a luz do dia (ou da noite…) e de que não têm vida social; no mercado de trabalho, quando um tipo conhecido entra numa grande empresa, já estamos à procura, quais baratas tontas, da origem de tamanha cunha.

Há sempre uma desculpa. Há sempre uma merdinha que nos impede de dizer “este gajo é melhor do que eu!”. Porquê? Porque a nossa natureza (ferida) é alérgica a actos de contrição. Esta “auto-desresponsabilização” conforta-nos. A conspiração faz-nos sentir melhor com a nossa inércia e com as nossas fraquezas. É sempre mais fácil agarrarmo-nos à ideia de que uma qualquer causa exógena interferiu nesta disparidade de destinos do que fazermos um mea culpa, reconhecendo que não fomos ou não somos suficientemente bons para ombrearmos com aqueles que chegam, legitimamente, ao topo.

É sempre comovente ouvir alguém dizer que falhou, que não foi capaz, que não esteve à altura das expectativas ou dos acontecimentos; sem falar dos outros, sem procurar responsabilidades alheias. Por detrás deste pequeno e simples gesto, costuma estar um espirito aberto, genuíno e humilde. É curioso constatar que os mais fortes são precisamente os que habitualmente se predispõem a assumir posturas humilhantes, os que se sujeitam a (porque não receiam) posições de fraqueza; e os mais fracos os que não se conseguem livrar da sua muy nobre e respeitável imagem de soberano e todo-poderoso.

Como diria Sartre, “o homem está condenado a ser livre”. E também aqui esta velha máxima se aplica. Na verdade, tudo se resume a uma questão de liberdade. De espirito, claro está.

A crise das referências

É difícil medir o quão importante é para nós ter referências. Pessoas que nos desafiam a ser melhores. Para quem olhamos e pensamos: “um di...