domingo, 23 de novembro de 2014

Caridade vs Solidariedade

Artigo publicado originalmente no jornal A Batalha:

Numa fase mais ingénua e inocente da minha vida, jamais me passou pela cabeça que algum ser (dito) humano pudesse olhar para a prática da caridade com uma boa dose de repúdio e desprezo. A ajuda directa ao próximo sempre foi uma ideia bem presente na minha educação, das poucas que nunca me atrevi a testar ou desafiar intelectualmente, de tão entranhada que estava no meu genuíno conceito de "bondade". Aprendi que a caritas christiana não se esgota num acto isolado de misericórdia ou compaixão. É muito mais do que isso: «é amor recebido e dado», como ensinou Bento XVI.

Com o passar dos anos, fui-me apercebendo que aquilo que era um dos pilares basilares e incontestáveis de toda a minha - creio eu - sólida estrutura moral e ética, era posto em causa por um número considerável de pessoas.

Em Novembro de 2012, Paulo Pedroso, antigo deputado e ministro do PS, escreveu um post onde sintetiza o grande argumento que, desde cedo, me foi apresentado por estas hostes. Reportando-se concretamente à acção do Banco Alimentar (BA), depois de constatar que as suas campanhas de recolha em supermercados representavam apenas 10% do valor dos produtos recolhidos, Pedroso escreveu que o BA «precisa das campanhas de recolha em supermercados por boas razões de marketing e ao fazê-lo mantém ocupados os escuteiros e toda a rede de voluntários ligada à Igreja Católica, que enquanto estão à porta dos supermercados a estender-nos os saquinhos estão a contribuir à sua maneira para o bem comum e a ajudar-nos a - como em todos os actos de caridade - aliviar as consciências sem resolver nenhum problema estrutural.» Mais tarde, num comentário a esse mesmo post, concretizou esta ideia, dizendo estar «convencido que é mais eficaz à escala colectiva a solução da promoção dos direitos sociais, comandados pela necessidade e pela distribuição equitativa de recursos pelo Estado do que a caridade comandada pela disponibilidade».

Para esta visão, uma solidariedade efectiva (assegurada pelo Estado) deveria eliminar os pressupostos da existência da caridade (a cargo da sociedade civil). A caridade, porque se esgota em ajudas pontuais, não resolve problema estrutural nenhum. Os pobres permanecem pobres. Mais: como defendeu recentemente John Bird, criador do projecto Big Issue (projecto no qual se inspirou a Cais), a caridade não só não resolve o problema da pobreza como ainda o perpetua. Por isso, a sociedade deveria preocupar-se mais em erigir um mecanismo de alcance universal, que calibrasse a sua actividade não em função da oferta (a disponibilidade de produtos) mas da procura (as necessidades das pessoas). Para esta visão, portanto, aqueles gestos correntes de misericórdia ou de compaixão, mais do que contribuírem para a resolução de um problema estrutural, servem essencialmente para que certas pessoas aliviem as suas (pesadas) consciências.

É por tudo isto que Paulo Pedroso conclui: «Por mim, prefiro dedicar a minha energia a perguntar-me o que posso fazer para que diminua este tipo de procura de bens alimentares enquanto a senhora Jonet escoa a oferta». É aceitável que o diga. O que já não é aceitável é afirmar, como o fez, que a acção de Isabel Jonet não é promota dos direitos humanos.

Está aqui aquilo a que Roger Scruton chama um “optimista inescrupoloso”. Um optimista que, de tão inebriado que está com a sua ideia abstracta e utópica de um mega Estado que a todos socorra, acaba por descorar os seus deveres mais elementares ou, pior, condenar aqueles que arduamente procuram melhorar a sorte dos que os rodeiam. Não é de estranhar. As palavras de Paulo Pedroso estão em consonância com o diagnóstico de Scruton: «Os optimistas inescrupulosos acreditam que as dificuldades e as desordens da espécie humana podem ser vencidas por um ajustamento em grande escala: basta inventar um novo arranjo, um novo sistema, e as pessoas serão libertadas da sua prisão temporária para um reino de sucesso. Quando se trata de ajudar outros, portanto, todos os seus esforços são postos no esquema abstracto de melhoramento humano e absolutamente nenhum na virtude pessoal que lhes podia permitir o desempenho do pequeno papel que aos humanos é atribuído na melhoria da sorte dos seus semelhantes».

A prática da caridade não implica a desresponsabilização do Estado, ainda que ela exista para chegar aonde os poderes públicos e as ajudas institucionais muitas vezes não chegam. Por isso, caridade e solidariedade devem caminhar juntas, numa lógica complementar. A caridade é uma ajuda mais próxima, mais preocupada, mais pessoal. A solidariedade é uma ajuda mais distante, mais fria, mais institucional. Enquanto que a solidariedade tende a diminuir nos períodos de aflição colectiva (como aquele que actualmente estamos a viver), a caridade não cessa de aumentar. E não sou eu que o digo. São, por exemplo, os números do Banco Alimentar.

A caridade, antes de ser responsável pela perpetuação da pobreza, é responsável pela sobrevivência de milhões de pessoas e pela subsistência da possibilidade de essas mesmas pessoas encontrarem um novo rumo para as suas vidas. É por isso que é profundamente injusto dizer-se que a caridade, enquanto modelo de combate à pobreza, fracassou. Precisamente porque a caridade não é um modelo de combate à pobreza; pelo contrário, ela visa chegar aonde os modelos existentes não chegam. Ela é, de certa forma, subsidiária. E é por isso que ela triunfa, todos os dias, quando sacia a fome ou a sede de alguém que, de outra forma, estaria condenado à agonia.

Enquanto Pedroso e afins engendravam os seus geniais (mas provavelmente inconcretizáveis) planos de previdência social universais, a caridade resgatou da fome aqueles que eternamente esperaram pelo apoio do idílico plano. Pergunto-me, então, se não estará a aliviar menos a consciência aquele que estende os saquinhos do Banco Alimentar à porta do supermercado do que aquele que, escudando-se no argumento de que urge resolver o problema estrutural da pobreza, se resigna à inércia.

Limitarmo-nos a idealizar um plano de concretização duvidosa e menosprezarmos o trabalho daqueles que decidem materializar (ainda que numa escala menor) aquilo que para nós não passa do plano do abstracto e do desejável é que não é lá muito promotor dos direitos humanos… Digo eu. A pedido da minha consciência, note-se.

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